sábado, 29 de agosto de 2009

A Palavra Digital

   O mesmo verbo pode assumir significados diferentes a cada relação que mantém com seus complementos .
Luiz Costa Pereira Jr

    Como um maestro, o verbo regente cria uma unidade necessária entre personas diversas, que o seguem
   A imagem de um maestro a conduzir a orquestra com batuta e fraque pode ser severa em demasia. Mas talvez traduza como poucas a ideia que fazemos da regência verbal. Como um maestro, o verbo regente cria uma unidade necessária entre personas diversas, que o seguem a seu sinal. Ele é, no entanto, regente caprichoso: o mesmo verbo pode assumir significados diferentes a cada relação que mantém com seus complementos.
  "Agradar", por exemplo, que é transitivo indireto com a preposição a no sentido de "satisfazer" e "ser agradável" (Quis agradar ao leitor), vira transitivo direto quando equivale a "contentar" e "acarinhar" (A mulher agradou o gato delicadamente).
   "Querer muito a moça" não é o mesmo que "querer muito à moça". "Parei para fumar" e "parei de fumar", por sua vez, dizem coisas distintas com a alternância da preposição, assim como "pegou pelo braço" e "pegou no braço".
   A regência diz respeito à relação entre os termos de uma oração ou entre orações de um período. O verbo, no caso, guia o modo como os complementos vão se apresentar na frase, o que induz o sentido e dá coesão a ela. Cada verbo, como sabemos, pode ligar-se a seus complementos de dois modos: com ou sem preposição. Ocorre, entretanto, que a relação de dependência, imposta por um verbo aos termos que o seguem, nem sempre foi a mesma.
   Ela é histórica. Datada e datável.
   "A regência, como tudo na língua, a pronúncia, a acentuação, a significação etc., não é imutável.  
   Cada época tem sua regência, de acordo com o sentimento do povo, o qual varia, conforme as condições novas da vida", escreveu Antenor Nascentes. Gramáticas históricas, como as de Ismael de Lima Coutinho e Manuel Said Ali, evidenciavam o fenômeno. Convém reeditá-las. Mas seus ensinamentos ecoam em autores atuais. Em Nada na Língua é por Acaso (Parábola, 2007: 137-8), por exemplo, Marcos Bagno cita estruturas do português arcaico e medieval citadas por Said Ali e que nos soariam estranhíssimas:
  "Resistir os assaltos" (e não "aos assaltos").
  "Perguntou-o que homem era" (perguntou a alguém alguma coisa).
  "Jurou de nunca mais vestir armas" (jurou nunca mais usar armas).
  "Mereci de ser seu servo" (mereci ser...).
  "Começar fazer" (a fazer).
   Se a regência verbal é histórica, sugere Bagno, não há razão para acreditarmos que não mude. Bagno, é verdade, cita a gramática histórica para justificar as variantes hoje em uso, quando na verdade ela explica usos e oscilações nas várias épocas, assim como a evolução da língua, o que difere de justificar um ou outro uso corrente atual. Mas fato é que muitas regências passam hoje por variação, o que indica mudanças permanentes talvez em andamento:
   "Assisti o filme" (e não "assisti ao filme", como a gramática manda).
   "Atenda o chamado" (ao).
   "Evitar de fazer" (evitar fazer).
   "Já paguei o marceneiro" (ao).
   "Prefiro [mais] abacaxi do que manga" (prefiro abacaxi a manga).
   "A reforma do prédio implicou gastos" (...implicou em gastos).
   Pisar
  A gramática tradicional recomenda o uso do verbo "implicar" como transitivo direto (sem preposição), quando equivalente a "fazer supor", "dar a entender", "acarretar", ("As novas denúncias implicam julgamento do acusado"
   A regência é para os gramáticos um tema tão flutuante que é frequente vê-los discordar em torno do mesmo verbo.
   Tradicionalmente, o verbo "chegar" é verbo de movimento (portanto, acompanhado por preposição a: "Chegou ao parque", "Chegou a Manaus"). Mas a ideia de conclusão, repouso, estado estacionário, contida no verbo quando diante do complemento de lugar, parece se sobrepor à ideia de movimento (daí o sentido "equívoco" de "Chegou no parque", "Chegou em Manaus").
   John Robert Schmitz, do Departamento de Linguística Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, já tentou entender o que passa pela mente dos usuários do idioma quando usam verbos na companhia de preposições consideradas indevidas segundo a regência "oficial" no idioma, como em "pisar na bola", "implicar em alguma coisa", "consistir de" e "namorar com".
   Há usuários, diz Schmitz, para quem retirar a preposição do verbo "pisar" num enunciado significaria que nada foi realmente pisado. Por isso, brasileiros "pisam no acelerador" e "na tábua", mas sabem que não devem "pisar na grama". Os portugueses dizem "pisou a bola". A um brasileiro, no entanto, soaria estranho dizer tal frase, assim como "pisou o tomate" ou "o freio", como recomenda a gramática normativa.
   O brasileiro dá de ombros à própria ambiguidade de sentidos de "pisou na bola", pois raramente se sente desconfortável entre as possibilidades de alguém ter escorregado na bola, feito falta num jogo ou dito uma besteira em campo, ao juiz, ou fora dele, a outro qualquer. Em cada caso de regência oficial de "pisar", o brasileiro entenderia que a preposição em enfatiza a ação e expressa a violência potencial embutida no verbo.
   Namorar
   A regência tradicional do verbo "namorar" também dispensa a companhia da preposição, no caso, com. Essa é a regência exigida, por exemplo, em concursos. Mas é raro, muito raro, nas situações de comunicação mais comuns, ver os brasileiros usarem "namoro aquela mulher". Em geral, preferem "namoro com". É possível que tal preferência, diz Schimtz, venha da intuição de que a ausência da preposição com daria ao namoro uma indiferença indesejável. Daí omitir-se o com quando o objeto do desejo não é uma pessoa: "Namoro aquele vestido há meses".
   A rigor, até com sentido intransitivo (sem complemento) podemos flagrar o verbo: "ele namora" pode significar que se tem o hábito de galantear, e não se consegue ficar sem namorar alguém. De todo modo, os dicionários, que registram usos concretos do cotidiano, anotam "namorar com". O Aurélio abona: "O uso de namorar com esta regência é perfeitamente legítima, moldado em casar com e noivar com". Mas dicionário não é gramática. É registro.
   Ocorre que mesmo linguistas menos inflamados e extremistas do que Bagno dizem que é preciso conviver com as variações atuais e, antes de adotar uma ou outra regência, entender o que e a quem falamos, em que circunstância. Pois textos diferem segundo o gênero e o contexto de comunicação, as condições de produção e de recepção. O que é considerado errado num caso pode fazer sentido no outro.
  Agradar
   Não por acaso, Celso Luft considerava que a regência de "agradar" sofreu uma evolução de sentidos no Brasil: teria ganho regência indireta por influência de sinônimos como "alegrar", "deleitar", "contentar" e "satisfazer". Mas dispensa preposição com o sentido de "mimar", "acariciar", "acarinhar" e é intransitivo em algumas situações ou pronominal, no sentido de "gostar", "simpatizar", "ter prazer". Daí "o apartamento agradou ao inquilino" (transitivo indireto), "Não se deve agradar os filhos exageradamente" (direto), "O relatório não agradou" (intransitivo) e "Ele se agradou do apartamento" (pronominal).
   Como entender a regência verbal, então? Pensando as recomendações das gramáticas como úteis às situações que requerem a variante formal escrita, como em textos formais, questões de concursos ou vestibulares, provas escolares e interações de trabalho.
   Nessas situações há maior rigor, que convém respeitar se o interlocutor o exige. Convém saber que, se não requer a preposição, o verbo é conhecido como transitivo direto: seu complemento é o objeto direto. Quando exigir preposição, chama-se transitivo indireto: o complemento é um objeto indireto. Quando há dois complementos implicados, o verbo é transitivo direto e indireto. E será intransitivo quando não precisar de complemento. Importa também saber qual a preposição com que o verbo se relaciona.
 
Classificações

   Essa classificação, como vimos, requer cuidados. Ainda mais porque mesmo gramáticos tradicionais divergem sobre a regência de verbos como "ir", por uns considerado intransitivo, por outros transitivo circunstancial. Como, então, encaixar os verbos na classificação? Os transitivos indiretos não admitem oração na voz passiva, em que o sujeito sofre a ação (a exceção é "obedecer"). "Gosto de namorar", transitivo indireto, não comporta passiva.
   O objeto indireto pode ser representado por substantivo, palavra substantivada, oração (oração subordinada substantiva objetiva indireta) ou pronome oblíquo. Há oblíquos átonos que funcionam como objeto indireto: me, te, se, lhe, nos, vos, lhes. Já os tônicos que funcionam como objeto indireto são: mim, ti, si, ele, ela, nós, vós, eles, elas. Assim, se substituído por pronome de terceira pessoa ("ele", "ela" e seus plurais), o objeto indireto é "lhe" ou "a ele" (e respectivas flexões, "lhes", "a ela" etc.).
  Os transitivos diretos indicam que o sujeito pratica a ação, sofrida por outro elemento (o objeto direto). Por isso, para saber se um verbo é transitivo direto, útil é passar a oração à voz passiva, o que só transitivos diretos admitem (além de "obedecer", "pagar" e "perdoar"). "Ele procura os óculos" (óculos são procurados por ele).
   O objeto direto pode ser representado por substantivo ou palavra substantivada, oração (subordinada substantiva objetiva direta) ou pronome oblíquo.
   Os oblíquos átonos que funcionam como objeto direto são: me, te, se, o, a, nos, vos, os, as. Os tônicos são: mim, ti, si, ele, ela, nós, vós, eles, elas. Como são tônicos, só são usados com preposição, por isso são objeto direto preposicionado.

Verbos sequenciados
   Há um pensamento gramatical que hoje muitos consideram despropositado e pode ilustrar uma norma que tende a ser superada, segundo o qual não seria "correto" compor dois verbos que, por princípio, pedem preposições diferentes. "Vi e gostei do filme" deveria ser reescrito para "Vi o filme e gostei dele", pois não se usa a forma isolada "Vi do filme".
   O brasileiro, no entanto, parece considerar desperdício repetir o complemento em tais casos. Se há sequência de dois verbos de regência diversa, mas com um só complemento, tendemos a considerar como implícita a preposição do complemento há pouco mencionado. Assim, "O eleitor hoje é contra ou a favor do Senado?", "Ela fez exames antes e durante a gravidez?". Em Moderna Gramática Portuguesa (Editora Lucerna, 37a ed., 1999: 569), Evanildo Bechara comenta:
   "Ao gênio de nossa língua não repugnam tais fórmulas abreviadas de dizer, principalmente quando vêm dar à expressão uma agradável concisão que o giro gramaticalmente lógico nem sempre conhece".
   Em alguns casos de regência, a língua, conclui ele, prioriza construções que a gramática insiste em continuar condenando

Dúvidas frequentes
 
   "Aspira o cargo", "aspira pelo cargo" ou "aspira ao cargo"?
   Transitivo indireto (almejar, pretender): Ele aspira ao cargo de diretor. Transitivo direto (absorver, inalar): Ele aspirou o veneno.
   "Quer muito à moça" x "Quer muito a moça"
   Transitivo indireto (estimar, amar, ter afeto por): Ele quer ao tio como a um pai. Ele quer muito à moça. Transitivo direto (desejar): Quero o melhor para você. Não a quis.
   "Atendeu os pedidos" x "Atendeu aos pedidos"
   Transitivo direto (acolher, servir): O balconista atendeu o freguês. Indireto (prestar atenção, considerar, satisfazer): Atendeu ao pedido.
   "Chamou os alunos" x "Chamou pelos alunos"
   Mesmo sentido com regências diferentes, transitivo direto e transitivo indireto. Transitivo direto (convocar): A professora chamou os alunos para a aula. Transitivo direto e indireto (ser notado, repreender): A roupa chamava a atenção de quem passava. A professora chamou a atenção dos alunos.
   "O Corinthians venceu ao Internacional" x "O Corinthians venceu o Internacional"
   Vencer é transitivo direto: "O Corinthians venceu o Internacional" é a forma consagrada pelos gramáticos tradicionais.

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